As Origens da Ordem
As Origens da Ordem
Frei Mateus Rocha OP
Ser Dominicano significa, concretamente, pertencer a uma tradição
religiosa que se formou no interior da Igreja, ao longo de alguns séculos. A Ordem dos Pregadores não nasceu ontem. Isso tem seu peso e sua importância.Isso e uma garantia como também é um limite. Esta tradição partiu de certos acontecimentos fundadores que se prendem a um homem carismático, São Domingos. Tradição que se ampliou pelo acréscimo de elementos que foi assimilando através dos tempos e das circunstancias, e que estão mais ou menos em continuidade com as suas origens e o seu espírito.
Nao se pode esquecer entretanto, de que os acontecimentos fundadores se deram em determinado contexto histórico que não podemos ignorar, sequisermos realmente conhecer sua significação mais profunda. Sabemos que tanto os Dominicanos quanto os Franciscanos nasceram no meio de um movimento sócio-re1igioso que explodiu no início do século XIII e que se pode chamar de ‘evangelismo medieval’. Movimento que se tornara mais compreensíve, se o considerarmos a luz da conjuntura mais vasta da vida da Igreja no período histórico que apenas pretendemos evocar.
O contexto histórico
Na vertente do sécu1o XII para o século XIII, a cristandade medieval que parecia ter chegado ao apogeu, começou a passar por transformações que a puseram em questão. Fora de seus limites geográficos, ao sul, os Muçulmanos, contra os quais se organizaram inutilmente as Cruzadas, dominando da Ásia Menor à Espanha, (com Califado de Córdoba) continuavam montando o cerco à Europa cristã.
A leste, ameaçavam-na os Tártaros, com o poderio e a vitalidade humana do continente asiático, até então desconhecido. A cristandade que, moldada nas formas geográficas e culturais do império romano, acreditava cobrir a humanidade e realizar a “Cidade de Deus”, tomava agora consciência de que tocara apenas uma parte da humanidade, e que o universo existia com seus imensos recursos profanos.
No seu interior, nas cidades e nas escolas, surgia uma sociedade nova que aspirava a um teor de vida diferente daquele que lhe apresentavam o feudalismo e a Igreja. O movimento comunal se levantava contra os senhores leigos e eclesiásticos, a velha nobreza agrária e sacerdotal, reivindicando- lhes, vigorosamente, liberdade econômicas e políticas. As Instituições que até então tinham sido válidas, se revelavam agora ineficazes e inoperantes. O comércio conhecia um grande desenvolvimento e povoava os caminhos da Europa de caravanas, gerando um novo tipo de riqueza, cujo símbolo não era mais a terra, mas o dinheiro.
Quanto à Igreja, achava-se cativa do mundo que ela mesma criara, com tanta energia e tenacidade. Seus compromissos feudais dificultavam-lhe a lucidez tornando-a uma força conservadora. Ainda mais que, no campo especificamente religioso, enfrentava dificuldades as mais graves, pois seu poder era contestado, em nome do próprio Evangelho.
Mostra-nos a historia que, periodicamente, a Igreja é como que sacudida por uma vibração evangélica que repercute em todo o seu corpo. Dir-se-ia que o vírus do Evangelho, escondido no interior de seu imenso organismo sobe-lhe violentamente a consciência, numa ânsia de mudança e renovação Desperta-se a ‘memória perigosa” da Igreja que se lembra de suas origens e empreende uma volta à verdade e ao fervor do Evangelho: sua fonte primeira de inspiração e norma definitiva de sua práxis. São os maiores momentos de sua história, apesar da turbulência que provocam. Esta virulência que, habitualmente, não é despertada pelas autoridades, quase sempre se manifesta pela percepção espontânea de um bloqueio do cristianismo com práticas religiosa e hábitos sociais que prejudicam sua transcendência e liberdade, obscurecem o seu testemunho e enfraquecem o vigor de sua mensagem. Urge libertar a fé de condicionamentos históricos e sociológicos que podem ser uma segurança mas que são sobretudo um peso e um limite. Para isso, é necessário voltar às fontes do Evangelho, sempre estuante de vida, sempre apto a fermentar a nova massa que a história lhe oferece.
A nostalgia da Igreja primitiva foi um dos motivos de fuga para o deserto.
A primeira comunidade cristã de Jerusalém, tal qual foi descrita por São Lucas (Atos 2, 42-47) , será sempre um idea1, uma utopia, que a Igreja ha de perseguir através dos séculos. A reforma canonical lançara para os clérigos do século XII um programa de volta ao Evangelho, ao fervor da Igreja primitiva, que encontraria na “Vita Apostólica”, a vida segundo os Apóstolos, sua expressão religiosa. No fim do século XII e particularmente no início do século XIII, o ideal da “Vita Apostólica” tomaria o caminho de uma revolução espiritual, pela emergência de grupos leigos que, solidários com a nova sociedade e ao mesmo tempo em ruptura com o mundo, iriam proclamar o valor absoluto do Evangelho no seu teor literal. “sem glosas”, dirão mais tarde os Franciscanos, depois de São Francisco.
Nasciam os movimentos paupertários que desafiavam não só a autoridade da Igreja, como particularmente sua capacidade de renovação evangélica. Em toda parte surgiam imitadores dos Apóstolos que se organizavam à margem dos quadros estabelecidos, admiráveis por sua pobreza e cheios de zelo apostólico, que seduziam o povo cristão e irritavam o clero. O próprio ardor evangélico freqüentemente os levava a intemperança de linguagem e à liberdade que terminavam por chocar-se com a hierarquia, autoritária e intolerante. Somente aqueles que vivem expressamente à maneira dos Apóstolos, sejam eles leigos ou mulheres, é que podem pregar o Evangelho, afirmavam. E completavam: fora disso, ninguém, seja papa ou simples padre, tem o direito de se dizer ministro do Senhor. Ora, viver como os Apóstolos, consistia para eles em andar a pé,
dois a dois, em grande humildade, sem carregar ouro, dinheiro ou moeda, sem possuir nada no mundo e só esperar o alimento da caridade das pessoas. Era tornar-se mendigo.
A pobreza, “a quem, segundo Dante, os homens não abrem mais facilmente a porta do que à morte”, se tornara assim o símbolo do Evangelho. E somente
dela derivava o direito da pregação. Acrescentemos que as diversas seitas que nasceram nesta época quase não visavam aos clérigos. Voltavam-se para o povo fiel, para a multidão dos leigos piedosos, apresentando-lhes um ideal de vida renovada, liberta das convenções culturais e religiosas estabelecidas.
Procuravam dar ao leigo consciência do seu valor, de sua dignidade, de sua aptidão para dirigir livremente sua vida religiosa. Programa positivo mas impreciso que justificava a diversidade dos grupos. Estes porém se uniam rapidamente contra o inimigo comum: o clero, a hierarquia, o papado.
Dentre todas estas seitas, duas nos chamam especialmente a atenção: os Cátaros (ou Albigenses) e os Valdenses. Todavia, enquanto os Cátaros, imbuídos de maniqueísmo, procuravam formar uma anti-igreja, os Valdenses pretendiam apenas reformá-la pela volta ao Evangelho. A Igreja não se achava à altura de problemas tão graves. A inércia dos bispos, antes príncipes que pastores, a ignorância e a corrupção do clero atavam-lhe as mãos. “Cães que não sabem mais ladrar.... mercenários que fogem e não expulsam o lobo nem com sua voz, nem com seu cajado... soldados que temem o assalto, que proíbem sua espada de derramar sangue”: são invectivas de Inocêncio III aos prelados da região de Narbona.
É bem verdade que a Igreja contava com um notável exército de monges. Mas estes não se achavam aptos às exigências dos tempos novos. Apesar de poderosa, carecia a Igreja de instrumentos adequados para evangelizar a nova classe formada por artesãos, comerciantes e intelectuais que chegava ruidosamente ao cenário da história, e para combater a heresia paupertária com suas próprias armas, isto é, com a vida evangélica. Melhor, com um novo tipo de vida evangélica.
Foi neste contexto sócio-religioso que nasceram as duas primeiras ordens mendicantes: Franciscanos e Dominicanos. Eram uma resposta aos desafios à Igreja daquela época. A volta ao Evangelho, a ‘imitação dos Apóstolos’ como então se dizia, meditada e vivida pelos homens novos, num clima europeu novo e em consonância com uma Igreja que, na pessoa de Inocêncio III, procurava novos caminhos, suscitou idéias novas e instituições novas. E seu evangelismo não foi vivido em si mesmo, como algo à parte, mas em relação com o mundo que os viu nascer e que eles, por sua vez, ajudaram a moldar.
Os primeiros Mendicantes foram homens que viveram profundamente os problemas de sua época e abraçaram seus ideais, suas lutas e suas conquistas,
superando-as, entretanto, naquilo que se desviava do ideal maior e absoluto do Evangelho. Assim é que, para citar apenas alguns exemplos, substituíram a idéia de Cruzada contra os infiéis com a de Missão. Foram grandes missionários. São Francisco chegou a pregar ao Sultão do Egito. São Domingos acalentara a vida inteira o sonho de evangelizar os Cumanos. Seus discípulos partirão mais tarde para os quatro cantos do mundo, não como lobos, mas como cordeiros. Participaram do movimento comunal, ajudando várias cidades a conquistar sua alforria e a se organizar, segundo os princípios de suas próprias instituições. As universidades que então nasciam e onde se lançavam os fundamentos do pensamento europeu, contaram com sua presença ativa e corajosa. Haja vista o que fizeram para recuperar o aristotelismo que invadia as escolas, através dos Árabes. E às aspirações dos leigos a uma vida cristã mais perfeita deram uma resposta inédita, com a fundação das Ordens Terceiras.
Referindo-se aos frades Dominicanos, escrevia Pe. Mandonnet: “A fundação da Ordem dos frades pregadores se acha intimamente ligada às necessidades gerais que se faziam sentir na cristandade do início do século XIII. Levando a vida religiosa a dar um novo passo, a Igreja Romana decidiu utilizá-la para a solução dos problemas urgentes que então se colocavam. Nem os monges voltados exclusivamente à sua santificação pessoal pelo trabalho da terra e pelo ofício divino nos mosteiros, ao quais se prendiam por um voto de estabilidade, nem os cônegos regulares cuja instituição era por demais próxima do regime monástico, podiam ser utilizados para um ministério que reclamava, antes de tudo, uma milícia eclesiástica letrada e imersa na vida social do tempo. Os Pregadores com sua vocação e sua pregação novas, responderam às necessidades de uma idade nova”.
A mendicância
O evangelismo dos Mendicantes produzirá um grande choque nos homens e nas instituições do século XIII. Provam-no o grande progresso que tiveram e a grande oposição que encontraram. Um mestre da universidade de Paris, Guilherme de Santo Amor, na segunda metade do século, se encarregará de fazer o processo daquilo que ele chamava de um “novo evangelho” adotado e pregado pelos falsos profetas dos últimos tempos. Quais são os pontos essenciais deste processo? Engajamento no mundo, de que deviam afastar-se pela profissão religiosa; ministério apostólico, para o qual não podiam receber um mandato habitual; ensino universitário, quando deviam manter-se numa humildade silenciosa; mendicância, contrária à boa ordem da sociedade. Aliás, a Igreja proibia os clérigos de mendigar, pois feria a dignidade sacerdotal. Cada época tem o seu tipo de reacionário.
O maior impacto que os mendicantes provocaram na Igreja e na sociedade do seu tempo foi a pobreza, tratada não apenas como uma ascese moral, numa comunidade fraterna de bens, mas como a condição institucional do Reino de Deus neste mundo.
Sabemos que a pobreza foi sempre uma questão candente na Igreja. Jamais perdeu sua atualidade. E por que? Porque a pobreza é um símbolo maior do Evangelho. Não há evangelismo sem despojamento efetivo de bens temporais. Neste particular, o Evangelho age contestando e provocando a Igreja. Aliás, me parece, o estabelecimento eclesiástico, ao longo de sua história, sempre temeu um confronto real com o Evangelho. Apesar de falar demais nele e sobre ele. Por outro lado, sempre houve na Igreja, desde os tempos mais antigos, uma identificação mística entre Jesus Cristo e os pobres de que, periodicamente, a Igreja tomou uma consciência mais viva. Não obstante viver ao lado dos ricos,
a Igreja sabe que seu Senhor e Mestre preferiu os pobres. E é entre eles que, normalmente, se encontra.
Em 1189, escrevia Alano de Lile: “O Cristo não pode fazer sua morada na casa dos prelados, porque esta é habitada pela simonia. Não pode refugiar-se entre os nobres, porque abrigam a rapina. Não há alojamento para ele entre os burgueses, porque a usura ali se instalou. É rejeitado pelos comerciantes porque são dominados pela mentira. Onde então habitará o Cristo? Entre os pobres a quem disse: Bem- aventurados os pobres em espírito”.
A pobreza religiosa é uma tentativa de viver esta identificação mística com Jesus Cristo, que foi pobre e preferiu os pobres. E, a seu modo, já era vivida pelos monges. Todavia, nos movimentos paupertários, a pobreza assumia a forma agressiva da mendicância. A ‘Vita Apostólica’ tornara-se um mito inebriante que despertava forças até então adormecidas. Não bastava viver pobremente: era necessário ainda mendigar o pão de porta em porta (ostiatim), descalço (pedites), e em grande humildade. “Na abjeção de uma pobreza voluntária” dirá Honório III a propósito dos Pregadores. Esse tipo de pobreza é que se convertera em símbolo do Evangelho. Ora, no contexto do século XIII, a mendicância assumia outras significações além de uma identificação mística com Jesus Cristo. Daí, a suspeita que pesava sobre ela, na Igreja. A mendicância era uma opção subversiva. De fato, abraçar a mendicância significava concretamente rejeitar o regime econômico da Igreja que, grande proprietária, vivia das rendas de suas terras, de dízimos e de benefícios. Por isso, os mendicantes repeliram os grandes mosteiros, majestosos e imutáveis como os castelos. Preferiam construções pobres, ocasionais, implantadas em bairros populares ou estudantis. Eles se adaptavam ao novo sistema econômico da Europa, fundado na circulação das riquezas. Evidentemente nem São Francisco nem São Domingos tiveram a consciência nítida de fazer uma opção contra um regime econômico. Mas viveram esta opção. Os Mendicantes “vomitaram a feudalidade” (Chenu) não por ideologia, mas pela mesma virulência evangélica que os fazia mendigar diariamente o seu sustento.
Vale a pena lembrar aqui uma anedota, que Gerard de Frachet (cronista dos tempos primitivos da Ordem) narra a respeito da sabedoria de Mestre Jordão. Conversando ele, certa feita, com alguns monges Cirstercienses, estes lhe objetaram a instabilidade de uma vida religiosa cuja manutenção dependia unicamente das esmolas dos fiéis. E quando a caridade arrefecer? Não estava previsto no Evangelho? Respondeu Jordão: “Com vossa próprias palavras provarei racionalmente que antes perecerá a vossa Ordem do que a nossa”. Com efeito, o arrefecimento da caridade de que fala o Evangelho coincidirá com um tempo de grandes perseguições à Igreja. E os perseguidores não tardarão a tomar as terras dos mosteiros. Neste caso, dispersos, os monges não conseguirão sobreviver. Enquanto que os frades nada sofrerão, pois acostumaram a mendigar o seu sustento.
A mendicância significava ainda libertar a pregação de seus compromissos feudais e procurar novas expressões para o Evangelho, atingindo com maior eficácia as outras camadas da sociedade. Esta convergência da pobreza e da liberdade fará dos Mendicantes grandes evangelizadores não só das novas
classes emergentes, como também dos pobres: dos que trabalhavam nos ateliês de tecelagem, dos sem casa e sem lugar, dos camponeses e dos servos da gleba. “Jamais li que o Senhor Jesus Cristo tenha sido monge, preto (cluniacense) ou branco (cisterciense), mas pregador da pobreza sim!”, dizia um jovem frade, segundo o testemunho de Etienne de Burbon.
Em fim, a mendicância significava a contestação da riqueza da nova sociedade que via na circulação do dinheiro a prova do seu êxito. Nenhum frade podia carregar consigo a menor moeda, como prescreve o texto evangélico. Além disso, era obrigado a recusar a esmola em espécie. Só podia mendigar o alimento, a roupa, os livros e outros objetos indispensáveis. A mendicância era, assim, ao mesmo tempo, uma presença e uma ruptura.
Foge ao meu propósito entrar em outras considerações sobre as nossas origens. Gostaria, entretanto, de salientar, ainda que em poucas palavras, o germe da Ordem dos Pregadores.
O germe da Ordem dos Pregadores
Numa tarde de junho de 1206, o bispo Diogo de Osma, acompanhado de sua comitiva, da qual fazia parte o sub-prior de seu cabido, Domingos de Caleruega, chegava à cidade de Montpellier. Incumbido de uma missão pelo rei da Castela, andara por terras da Dinamarca e, depois de ter passado por Roma, onde o acolhera Inocêncio III, voltava agora para sua diocese. A parada do bispo de Osma em Montpellier teria conseqüências importantes para os rumos da Igreja no século que evocamos. Mas, cedamos a palavra a Mestre Jordão de Saxônia:
“Naquele tempo, o Papa Inocêncio tinha enviado doze abades cistercienses com um legado a fim de pregarem a verdadeira fé contra os hereges albigenses. E eles celebravam uma assembléia com os arcebispos, bispos e demais prelados da região, para estudar o método mais apto para levar a cabo o objetivo de sua missão, com o maior fruto”.
“Cientes de que o recém-chegado era um santo varão, maduro e zeloso pela integridade da fé, os receberam com todas as honras e lhe pediram conselho.”
“Homem circunspecto e perito nos caminhos de Deus, primeiramente indagou dos ritos e costumes dos hereges, inteirando-se das manobras, exortações e exemplos de simulada santidade com que costumavam agradar perfidamente os incautos para fazê- los cair na heresia; e constatando, ao contrario, o grande e rico aparato de cavalos e vestes dos enviados, disse-lhes: A meu ver, irmãos, não é este o caminho. É impossível que façam voltar à fé somente com palavras, a estes homens que se apóiam em tantos exemplos. Vejam os hereges: sob a aparência da piedade, simulando exemplos de pobreza e austeridade evangélica, eles seduzem as almas simples. Com um espetáculo contrário, edificareis pouco, destruireis muito e não lograreis nada”.
Perguntaram-lhe os legados: “E o que nos aconselhais, bom padre?” Ao que respondeu: “Façam o que me virem fazer.”
“Em seguida, impulsionado pelo Espírito de Deus, chamou os seus e lhes deu a, ordem de regressarem a Osma, com as azêmolas e o aparatoso séqüito, retendo em sua companhia somente um pequeno grupo de clérigos e declarando que era seu propósito deter-se naquela terra para propagar a fé. Reteve consigo o mencionado Domingos, sub- prior, a quem tinha em grande conta e amava com extremoso afeto”.
“Este é frei Domingos, fundador e frade da Ordem dos Pregadores, que desde este tempo começou a chamar-se não mais sub-prior, mas frei Domingos, homem verdadeiramente do Senhor, preservado pelo Senhor limpo de todo pecado e zeloso de seus preceitos”.
“Os Abades, ouvido o conselho e animados pelo exemplo, decidiram fazer a mesma coisa: remeteram todas as bagagens à sua procedência e conservaram consigo somente
os livros necessários para a oração, o estudo e a controvérsia. Tomando o bispo Diogo como superior e cabeça de toda a obra, indo a pé, sem dinheiro, em voluntária pobreza,
começaram a pregar a fé”.
Não era a primeira vez que Diogo de Osma e Domingos de Caleruega ouviam falar dos hereges. Desde que tinham saído de Castela, numa primeira viagem a Dinamarca, viram o que se passava no sul da França. Naquele dia porém tomaram consciência do fracasso da Igreja em face da heresia. Os legados do Papa lhes contaram que, após dois anos e meio de pregação, nada haviam conseguido. Entretanto, não analisavam corretamente a situação. Atribuíam o seu insucesso ao relaxamento do clero. De fato, completa Pierre
des Vaux de Cernai, “Toda vez que os legados procuravam lhes pregar, os hereges lhes objetavam a péssima conduta do clero. Ora, se quisessem corrigir antes a vida do clero,
evidentemente, era necessário interromper a pregação”. Os legados pontifícios se achavam deste modo num impasse.
Homem circunspeto e prudente, Diogo procurou inteirar-se da situação. E concluiu que os métodos empregados pelos missionários do Papa não eram adequados ao fim que se propunham. Diríamos, hoje, que o bispo de Osma fez-lhe uma análise crítica, a partir da realidade: “Não é este, irmãos, o caminho”.
Era de se lamentar a conduta do clero. Mas o fundo do problema não estava ali, mas no estilo de vida dos pregadores. Não se pode pregar apenas com palavras. Sobretudo a homens que se apoiavam em tantos exemplos de virtudes. Era preciso combater os hereges com suas próprias armas. Urgia abraçar seu estilo de vida. Se quisessem ter êxito em sua missão, os legados teriam, também eles, que viver segundo os Apóstolos. Diogo de Osma lhes propunha um caminho novo no qual não haviam pensado.
Os pregadores estavam desconcertados. A proposta de Diogo era por demais radical e, acrescenta Cernai, “cheirava a novidade”. Para eles, esta palavra tinha um sentido pejorativo. De si mesmos, não queriam adotar este modo de vida. Além disso, eram legados do Papa, portanto, representantes da maior autoridade da Europa cristã. Tomar o caminho que Diogo lhes apontava, não seria submeter-se a uma humilhação indevida? Não depreciariam com isso a dignidade de que se achavam revestidos? Mendigar o pão de porta em porta, se era um opróbrio para o clero, seria uma vergonha para a cristandade. Enfim, ligar a pregação a tal atitude não seria, aos olhos do povo, dar ganho de causa aos hereges, segundo os quais só podia pregar quem abraçava a vida segundo os Apóstolos?
Todavia, é ainda Cernai que nos informa, “se alguma pessoa de real autoridade moral aceitasse iniciar a pregação daquele modo, eles o seguiriam de bom grado” (6). Diogo aceitou o desafio e passou a agir imediatamente, como relata Mestre Jordão. Os legados pontifícios se viram então obrigados a abraçar, também eles, a vida mendicante. Era um gesto mais do que suspeito à Igreja daquele tempo. Mas deu certo. Inaugurava-se deste modo uma nova forma de pregação na Igreja. Uma pregação que não se baseava apenas na autoridade, mas sobretudo no testemunho de vida do pregador.
Infelizmente, pouco depois, os Cistercienses voltaram para seus mosteiros. Eram monges e feudais. A pregação e mais ainda a mendicância não estava em
continuidade com a tradição de sua Ordem. E nem concebiam a missão que o Papa lhes impusera como um serviço de tempo indefinido. Depois de dois anos, Diogo decidiu visitar sua diocese e trazer recursos, para continuar a pregação. Mas, chegado a Osma, logo morreu. A notícia de sua morte acabou dispersando os pregadores que haviam permanecido na região. O único a continuar firme foi São Domingos, seguido apenas de um ou dois companheiros.
Seria falso dizer que a Ordem dos Pregadores nasceu daquele encontro em Montpellier. Mas não é exagerado afirmar que ali estava seu germe. Aliás, este era o pensamento dos contemporâneos de São Domingos. Neste particular, temos, entre outros, o testemunho de Etienne de Burbon. Escrevia ele: “E este foi o germe criador da instituição dos Pregadores. Eu o ouvi ser afirmado pelos primeiros frades que estavam nesta terra com o bem-aventurado Domingos”.
A partir daquele encontro de 1206 até a instituição da Ordem em 1215 e ao Capítulo Geral de 1220, não há dúvida, São Domingos percorreu um longo caminho. Mas seguindo sempre aquela primeira inspiração, sendo fiel ao germe ,que recebera de Diogo. Ele foi talvez o único a compreender o verdadeiro alcance da proposta e do exemplo do bispo de Osma. Seja como for, a visão crítica da realidade que exigia uma ruptura com o passado e uma procura de caminhos novos, provocou gestos de audácia evangélica e levou São Domingos
a fundar a Ordem.
A meu ver, este é o acontecimento chave que marca definitivamente nossas origens. Temos também aqui os elementos fundamentais do espírito dominicano: visão crítica da realidade, participação nos movimentos da história, procura de caminhos novos que exigem ruptura com o passado e audácia evangélica que inventa o futuro.
NOTAS:
(1) Vicaire, M-H: Histoire de Saint Dominique. Paris. Cerf. 1957 I-p. 157.
(2) Mandonnet, P.: Saint Dominique. Paris. 1938, p. 83.
(3) Cf. Michel Mollat: Pauvres e pauvreté à la fin di XIIe. Siècle, em Le Mépris du
monde. Paris. Cerf, p. 87
(4) B. Jordão: Origens da Ordem dos Pregadores, nn. 13-14.
(5) Pierre de Vaux de Cernai: História Albigensis. Cf.Vicaire, I- p. 188ss
(6) Ibidem, p. 191
(7) Cf. Vicaire, I, p. 192.
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